cachola organizada

terça-feira, 23 de abril de 2013

Maioridade Penal, longe de ser apenas uma falsa dicotomia

terça-feira, 23 de abril de 2013



Nos últimos cinquenta anos, acompanhamos o avanço de transformações nunca ocorridas em momento anterior.  O acesso à informação não é exclusividade a ninguém, novas tecnologias fazem parte do cotidiano, principalmente no meio de adolescentes e jovens, não mais espaço para a ingenuidade, estes estão mais afetos a essas inovações.
Desta feita, invadiu nos últimos tempos, com mais vigor, o debate sobre a maioridade penal, pugnando-se impor uma revisão deste  preceito constitucional.  A sociedade, acuada com os índices de violência brutal associadas a menores,  começam a ter respeitáveis vozes defendendo a diminuição da maioridade penal, mas grande parte dessa corrente a condiciona à comprovação do desenvolvimento intelectual e emocional do adolescente entre 16 e 18 anos, adotando o sistema biopsicológico (ou biopsicológico normativo ou misto), onde as pessoas nessa faixa etária necessariamente serão submetidas a avaliação psiquiátrica e psicológica para aferir o seu grau de amadurecimento.
Ocorre que não existe  estrutura organizacional para a realização desses exames.  Em cada crime ou contravenção praticada por adolescente nessa faixa etária, teria que ser providenciada  perícia médico-psicológica para apurar a imputabilidade ou inimputabilidade, mesmo em se cuidando de delito de bagatela. Isso atrasaria sobremaneira a instrução do processo, congestionaria a rede pública de saúde e obstaria por completo a entrega da prestação jurisdicional. De salientar que em grande parte das comarcas do interior do Brasil não há profissionais habilitados para tal. Haveria, então, necessidade de transportar os menores para centro maior, aumentando os riscos de resgate, fuga, além de considerável ônus para o Estado.
A situação é sistêmica, o cidadão comum não possui conhecimento suficiente para analisar, por exemplo, se a Justiça combate eficientemente a criminalidade.

Fica evidente a ideia de que os jovens de nossos tempos têm consciência de seus atos e devem responder pelas infrações cometidas. Mas criar as medidas sócio-educativas, o legislador tentou dar um tratamento diferenciado aos menores, reconhecendo neles a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento. Nessa linha, as medidas deveriam ser aplicadas para recuperar e reintegrar o jovem à comunidade, o que lamentavelmente não ocorre, pois ao serem executadas transformam-se em verdadeiras penas, completamente inócuas, ineficazes, gerando a impunidade, tão reclamada e combatida por todos.
No processo de sua execução, esta é a verdade, as medidas transformam-se em castigos, revoltam os menores, os maiores, a sociedade, não recuperam ninguém, a exemplo do que ocorre no sistema penitenciário adotado para os adultos.
A questão, portanto, não é reduzir a maioridade penal, que na prática já foi reduzida, mas discutir o processo de execução das medidas aplicadas aos menores, que é completamente falho, corrigi-lo, pô-lo em funcionamento e, além disso, aperfeiçoá-lo, buscando assim a recuperação de jovens que se envolvem em crimes, evitando-se, de outro lado, com esse atual processo de execução, semelhante ao adotado para o maior, que é reconhecidamente falido, corrompê-los ainda mais.
Deveres constitucionais inaplicados
O Estado, Poder Público, Família e Sociedade, (Art. 227 CF) que têm por obrigação garantir os direitos fundamentais da criança e do adolescente (menores),  não podem, para cobrir suas falhas e faltas, que são gritantes e vergonhosas, exigir que a maioridade penal seja reduzida.
Para ilustrar, vejam quantas crianças sem escola (quase três milhões) e sem saúde (milhões) por omissão do Estado; quantas outras abandonadas nas ruas ou em instituições, por omissão dos pais e da família; quantas sofrendo abusos sexuais e violências domésticas por parte dos pais e da família; quantas exploradas no trabalho, no campo e na cidade (cerca de 7,5 milhões), sendo obrigadas a trabalhar em minas, galerias de esgotos, matadouros, curtumes, carvoarias, pedreiras, lavouras, batedeiras de sisal, no corte da cana-de-açúcar, em depósitos de lixo etc, por ação dos pais e omissão do Estado.
A sociedade, por seu lado, que não desconhece todos estes problemas, que prejudicam sensivelmente os menores, não exige mudanças, tolera, aceita, cala-se, mas ao vê-los envolvidos em crimes, muito provavelmente por conta destas situações, grita, esperneia, sugere, cobra, coloca-os em situação irregular e exige, para eles, punição, castigo, internação, abrigo em instituições.
Ora, quem está em situação irregular não é a criança ou o adolescente, mas o Estado, que não cumpre suas políticas sociais básicas; a Família, que não tem estrutura e abandona a criança; os pais que descumprem os deveres do pátrio poder; a Sociedade, que não exige do Poder Público a execução de políticas públicas sociais dirigidas à criança e ao adolescente.
O sistema é falho, principalmente o da execução das medidas sócio-educativas, para não dizer falido, mas o menor, um ser em desenvolvimento, que necessita do auxílio de todos para ser criado, educado e formado, é quem vem sofrendo as conseqüências da falta de todos aqueles que de fato e de direito são os verdadeiros culpados pela sua situação de risco.
Não bastasse isso, o que, por si só, já é extremamente grave, pretendem alguns reduzir a maioridade penal, tentando, com a proposta, diminuir sua culpa e eliminar os problemas da criminalidade, esquecendo-se, porém, além de tantos outros aspectos, que metade da população é composta de crianças e adolescentes, os quais, contudo, são autores de apenas 10% dos crimes praticados.
Reduzir a maioridade penal é reconhecer a incapacidade do Estado brasileiro de garantir oportunidades e atendimento adequado à juventude
A proposta de redução busca encobrir as falhas dos Poderes, das Instituições, da Família e da Sociedade e, de outro lado, revela a falta de coragem de muitos em enfrentar o problema na sua raiz, cumprindo ou compelindo os faltosos a cumprir com seus deveres, o que é lamentável pois preferem atingir os mais fracos - crianças e adolescentes -, que muitas vezes não têm, para socorrê-los, sequer o auxílio da família.

A Família 
E falando da primeira instituição a qual todos temos contato,  desde os tempos mais antigos, a família corresponde ao grupo social que exerce marcada influência sobre a vida das pessoas, sendo encarada como um grupo com uma organização complexa, inserido em um contexto social mais amplo com o qual mantém constante interação. O grupo familiar tem um papel fundamental na constituição dos indivíduos, sendo importante na determinação e na organização da personalidade, além de influenciar significativamente no comportamento individual através das ações e medidas educativas tomadas no âmbito familiar. Pode-se dizer, assim, que esta instituição é responsável pelo processo de socialização primária das crianças e dos adolescentes. Nesta perspectiva, a família tem como finalidade estabelecer formas e limites para as relações estabelecidas entre as gerações mais novas e mais velhas, propiciando a adaptação dos indivíduos às exigências do conviver em sociedade. A família é um sistema no qual se conjugam valores, crenças, conhecimentos e práticas, formando um modelo explicativo de saúde/doença, através do qual a família desenvolve sua dinâmica de funcionamento, promovendo a saúde, prevenindo e tratando a doença de seus membros .
A Constituição Federal de 1988 representou um marco na evolução do conceito de família, em seu capitulo VII – Da Família, da Criança do Adolescente e do Idoso, precisamente no artigo 227, caput, determina:
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
A estruturação da família está intimamente vinculada com o momento histórico que atravessa a sociedade da qual ela faz parte, uma vez que os diferentes tipos de composições familiares são determinados por um conjunto significativo de variáveis ambientais, sociais, econômicas, culturais, políticas, religiosas e históricas. Nesse sentido, para se abordar a família hoje é preciso considerar que a estrutura familiar, bem como o desempenho dos papéis parentais, modificaram-se consideravelmente nas últimas décadas.
Portanto, caso a proposta de redução da maioridade penal,  se vingar, configurará um "crime hediondo", praticado contra milhões de crianças e adolescentes, que vivem em situação de risco por culpa não deles mas de outros que estão tentando esconder suas faltas atrás desta proposta, que, ademais, se aprovada, não diminuirá a criminalidade, a exemplo do que já ocorreu em outros países do mundo.
A redução da maioridade penal será uma  medida ilusória pois irá contribuir para que tenhamos criminosos profissionais cada vez em idade mais precoce, formados nas cadeias, dentro de um sistema prisional arcaico e falido.

O Estado 
Dados do Ministério da Justiça revelam  o número total de presos em penitenciárias e delegacias brasileiras subiu de 514.582 em dezembro de 2011 para 549.577 em julho de 2012. O número de pessoas encarceradas no Brasil dobrou, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão  ligado ao Ministério, 34.995 pessoas foram presas no primeiro semestre daquele  ano, enquanto foram criadas apenas 2.577 vagas nas penitenciárias. No mesmo período do ano passado foram 17.551 detidos.
O aumento do número de presos está fora de qualquer padrão já verificado no Brasil. Para piorar a situação, até os últimos dias de 2012, somente 20% dos R$ 435,2 milhões autorizados para o setor carcerário foram pagos, segundo dados do Siga Brasil, sistema de informações sobre o orçamento público.
Segundo levantamento feito a pedido da BBC Brasil pelo especialista Roy Wamsley, diretor do anuário online World Prison Brief (WPB), nas últimas duas décadas o ritmo de crescimento da população carcerária brasileira só foi superado pelo do Cambodja (cujo número de presos passou de 1.981 em 1994 para 15.404 em 2011, um aumento de 678% em 17 anos) e está em nível ligeiramente inferior ao de El Salvador (de 5.348 presos em 1992 para 25.949 em 2011, um aumento de 385% em 19 anos).

Se a tendência de crescimento recente for mantida, em dois ou três anos a população carcerária brasileira tomará o posto de terceira maior do mundo em números absolutos da Rússia, que registrou recentemente uma redução no número de presos, de 864.197 ao final de 2010 para 708.300 em novembro dese ano, segundo o último dado disponível.
"Por mais esforço que o Estado faça, não dá conta de construir mais vagas no mesmo ritmo", admite o diretor do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, Augusto Rossini.
Segundo ele, o crescimento acelerado no número de prisioneiros no país é consequência tão somente do aumento da criminalidade, mas também do endurecimento da legislação penal, da melhoria do trabalho da polícia e da maior rapidez da Justiça criminal.
O índice de reincidência no sistema prisional brasileiro, conforme dados oficiais do Ministério da Justiça, chega a 60%, o que, em sua opinião, indica “claramente” que se trata de um sistema incapaz de resolver a situação. Já no sistema de adolescentes, por mais crítico que seja, estima-se a reincidência em 30%.
Um dos maiores especialistas do mundo no tema, o finlandês Matti Joutsen,  Diretor do Instituto Europeu para Prevenção e Controle ao Crime (Heuni), órgão consultivo da ONU,  , é possível que o aumento no número de prisioneiros provoque um aumento na violência. "Os prisioneiros são geralmente soltos na sociedade após alguns anos, e se não há tentativas efetivas de reabilitá-los e de prepará-los para a soltura, eles estarão em sua maioria mais propensos a cometer novos crimes", afirma. "Afinal de contas, por cortesia do governo, eles acabaram de passar os últimos anos entre um grande número de criminosos, formando novas alianças, aprendendo novas técnicas criminosas, conhecendo novas oportunidades criminais e formando sua 'mentalidade criminosa'", argumenta.
Para ele, "quando os criminosos são soltos de volta para as favelas de São Paulo, do Rio de Janeiro ou de qualquer outro lugar sem um trabalho, sem uma casa e com perspectivas muito ruins, é muito provável que adotem novamente um estilo de vida criminoso", diz.
Joutsen observa que a superlotação e as condições precárias do sistema prisional brasileiro tornam "praticamente impossível" a implementação de qualquer programa de larga escala para promover a ressocialização dos presos.
"Como você ensina uma profissão a uma pessoa, provê educação básica, promove valores básicos e prepara ela para voltar à comunidade em liberdade, pronta para encontrar um emprego, estabelecer uma família, encontrar uma casa e se adequar à sociedade quando o governo já tem restrições em seus gastos e não há aparentemente vontade política de gastar os recursos limitados com os prisioneiros?", questiona.
Para José de Jesus Filho, da Pastoral Carcerária, falta ao governo um plano para reintegração social dos presos. "No final do ano passado, o governo anunciou um plano de US$ 1,1 bilhão para a construção de 42,5 mil novas vagas em presídios, mas não alocou nem um centavo para a ressocialização dos presos", critica.
"O que existem são apenas projetos-piloto, sem a dimensão necessária. Não é uma política universal do Estado", afirma.
Para ele, a função do encarceramento em ressocializar o criminoso está sendo deixada de lado, e as prisões no país "são vistas mais como meio de vingança da sociedade e de isolamento das populações mais marginalizadas".
Se colocar adultos nas cadeias de um sistema falido não resolveu o problema da violência, e essas pessoas voltam a cometer crimes após ficarem livres, por que achamos que prender cada vez mais cedo será eficiente?

A Sociedade
Há poucos investimentos financeiros e infra-estrutura para promover e elevar a auto estima da juventude rural, periférica ou urbana. No período de 1998 e 2008, o número total de homicídios registrados em todo o Brasil passou de 41.950 para 50.113 jovens mortos. Segundo IBGE/2008, país contava com 34,6 milhões de jovens na faixa dos 15 aos 24 anos deidade, 18,3% do total dos 189,6 milhões.
As informações estão no Mapa da Violência – Jovens do Brasil, pesquisa do sociólogo Júlio Jacobo Waiselfisz, realizada pelo Instituto Sangari, publicada pelo Ministério da Justiça / Governo Federal.
Além disso, o último Mapa da Violência (http://www.mapadaviolencia.org.br/ ) indica que a questão a ser encarada do ponto de vista da política pública é a mortalidade de jovens, sobretudo, dos jovens negros, e não a autoria de crimes graves por jovens”, completou.
Segundo o Mapa, de cada três mortos por arma de fogo, dois estão na faixa dos 15 a 29 anos. De acordo com a publicação, feita pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos e pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. As cidades metropolitanas formaram periferias com aglomerados humanos sem infraestrutura, formada por maioria de afro-descendentes. A juventude apresenta elevado índice de violência, risco social e vive sem oportunidades.
Portanto, muito longe de apresentar-se como uma falsa dicotomia, a discussão sobre os menores no país passa por uma grande revolução nas bases institucionais, no comprometimento constitucional destes e o marco legal de políticas públicas aos jovens.

Nenhum comentário: